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19/12/2019 08h25
Tudo ou nada: entenda o debate sobre o vínculo entre aplicativos e entregadores

Empresas de tecnologia em franco crescimento de um lado, milhares de profissionais do outro. A existência de uma intrínseca relação entre o setor de economia compartilhada e seus "parceiros" ou "fornecedores" é evidente.

O que ainda gera discussão nos Tribunais de Trabalho do país é qual o vínculo entre as duas partes. Para solucionar o impasse, especialistas apontam a necessidade de uma regulação própria.

"Falta o trabalho legislativo nessa questão. É necessário regular essa relação. Hoje é tudo ou nada, ou a empresa tem que arcar com todos os vínculos, ou o trabalhador fica sem proteção alguma", avalia o advogado trabalhista e professor do Ibmec, Flávio Monteiro.

"Existe um nível de subordinação entre entregadores e aplicativos, mas isso também não significa que o vínculo seja empregatício . Por outro lado, o trabalhador muitas vezes investe, financia um veículo, e o aplicativo pode desligá-lo sem maiores explicações, falta segurança", afirma o advogado trabalhista Caio Moreira.

Ele também defende a criação de uma regulação específica. "Esse meio termo só poderia ser alcançado com uma nova legislação", explica.

Uma decisão do início deste mês da 8ª Vara do Trabalho de São Paulo, que reconheceu o vínculo empregatício entre o aplicativo Loggi e 15 mil motoboys que fazem entregas por meio da Loggi no Estado de São Paulo, reascendeu esse debate. Mas não foi a única.

Em Alagoas, o juiz Flávio Luiz da Costa, da 2ª Vara do Trabalho de Maceió, também reconheceu em novembro o vínculo empregatício de um motoboy que trabalhava para o iFood e determinou que ele fosse indenizado sob o regime da lei trabalhista.

Repercussão
As duas decisões são em primeira instância. A Loggi, por nota, informa que pretende rever a decisão. "A empresa reitera que a decisão pode ser revista pelos tribunais superiores e que continuará gerando renda para milhares de entregadores, clientes e movimentando a economia brasileira", declara.

A empresa ainda usa a nota para afirmar que é "preocupada com todos os parceiros" e "disponibiliza seguro contra acidentes , oferece cursos de pilotagem, realiza campanhas permanentes de segurança no trânsito".

A sensação de insegurança, porém, é a principal reclamação de Henrique * , de 43 anos, que trabalha para Loggi há cerca de um ano e meio. "Se eu cair na rua, não tenho a quem recorrer , é tudo por minha conta. Sem contar que agora, fim de ano, não tenho décimo terceiro", lamenta. "Para nós (entregadores) vai ser bom se tiver que ter vínculo empregatício", opina.

Ele é motoboy há 15 anos, mas há menos de dois anos atrás o seu contrato com a empresa em que trabalhava acabou e não foi renovado . "Eles não querem motoboy contratado, vale mais a pena pedir pelo aplicativo agora. Por isso eu migrei", conta.

Ele trabalha até 12 horas por dia de segunda a sexta-feira e em alguns finais de semana para garantir uma renda de cerca de R$ 2.000 mensais, além das despesas com a moto.
Essa "migração" foi um dos argumentos utilizados pelo Ministério Público do Trabalho de São Paulo na Ação Civil Pública contra a Loggi que resultou na decisão paulista.

"A Loggi trouxe desregulamentação ao setor ao garantir vantagem econômica por meio da concorrência desleal. Isso afetou outras empresas do ramo e provocou a migração de motoboys formalmente registrados nessas empresas para o aplicativo", declara o procurador do MPT-SP Rodrigo Castilho, que participou do processo.

"Essa sentença promove a regulação do setor e afasta a ideia de que não há vínculo empregatício entre o aplicativo de entregas e os motoboys", acrescenta o procurador.

O iFood também se manifestou sobre o processo em Alagoas, por nota. Segundo a empresa "não houve reconhecimento de vínculo empregatício entre a plataforma e o entregador na decisão da 2ª Vara do Trabalho de Maceió e se manifesta a respeito da ação somente nos autos do processo", declara.

A Associação Brasileira de Online to Offline (ABO2O) que reúne várias empresas de tecnologia como 99, Getninjas, Inter, Cabify, além de iFood e Loggi, também se posicionou.

"A ABO2O avalia que tal decisão é equivocada do ponto de vista técnico e social e que gera insegurança jurídica para a inovação e o empreendedorismo no Brasil", diz a nota da Associação.

O advogado Flávio Monteiro, lembra, porém, que a viabilidade dos negócios da empresa não são considerados em ações trabalhistas. "O papel da Justiça do Trabalho é avaliar somente se existe o vínculo empregatício ou não. A capacidade de se manter da empresa não é uma questão", explica.

Monteiro, porém, admite que a manutenção da empresa, e sua importância econômica podem influenciar a decisão de alguns juízes, principalmente nos tribunais superiores .

Um levantamento feito pela ABO2O aponta que 79% das sentenças de ações individuais não reconheceram o vínculo empregatício nos casos contra empresas de tecnologia no primeiro semestre de 2019.

Da mesma forma, segundo a Associação, na segunda instância, em casos de recursos, 100% dos acórdãos proferidos mantiveram a decisão da primeira instância de não reconhecer o vínculo empregatício.

No caso do iFood, o número de ações trabalhistas solicitando o reconhecimento do vínculo trabalhista contra a empresa no Brasil cresceu quase três vezes (2,6) de 2018 para 2019, passando de 24 em 2018 para 64 neste ano.

No estado de São Paulo, a proporção é parecida. Em 2018 foram 15 processos, contra 37 em 2019, 2,4 vezes mais do que no ano anterior.

Os números da empresa vão na contramão dos pedidos de vínculo empregatício gerais no país. Após a reforma trabalhista, que passou a valer a partir de 2018 no Brasil, o número de processos dessa natureza só caiu.

Em 2017, foram 128.881, em 2018 87.154 e 64.495 em 2019. Uma queda de 50% em dois anos. No Estado de São Paulo, a queda foi de 61% de 2017 para 2019. Os números fazem parte de um levantamento feito pela startup Data Lawyer a pedido do Brasil Econômico.

Garantias
Para a ABO2O, a falta de vínculo trabalhista não significa falta de garantias. "A autonomia garantida aos usuários cadastrados nestas plataformas da economia compartilhada não implica em ausência de direitos sociais, garantidos pela legislação para todo e qualquer trabalhador autônomo.", diz a nota da Associação.

O motoboy do iFood, Rodrigo * , 21, que trabalha há quase um ano no aplicativo, concorda com esse raciocínio. "Eu sou MEI (Microempreendedor Individual) e tenho os direitos garantidos , não concordo com a ideia de contratar todos os motoboys. Cada um deve utilizar o aplicativo como achar melhor", opina.

Já Rafael * , contratado como motoboy para o Habib’s que faz entregas do iFood pedido na rede de fast food, não trabalha para o aplicativo por não considerar vantajoso . "O valor de R$ 7 por entrega é muito baixo e se eu não encontrar quem pediu fico no prejuízo, não vale a pena na minha opinião", declara.

Para o advogado Caio Moreira, ainda não é possível falar em uma jurisprudência estabelecida neste caso. Especialistas e empresas, no entanto, concordam em um ponto: as mudanças no mundo do trabalho trazidas pela tecnologia vieram para ficar.

"O impacto da tecnologia no mundo do trabalho envolve questões regulatórias e éticas , mas pesando os lados positivos e negativos, os ganhos são maiores", avalia Caio Santos, CEO da Data Lawyer.

* os nomes dos entregadores foram preservados

(Com informações do portal Ig Economia)